Circunstância e vida

"Tantas vezes tens um copo meio cheio e olhas para ele e apenas vês um copo meio vazio. A vida, como os copos, serve-se nas doses com que a olhamos. Há circunstâncias que mudas. Umas porque queres, outras porque aconteceu. A vida acontece muitas vezes à nossa frente. Antecipa-se, escorrega-nos das mãos mas, em algumas circunstâncias, em vez de se partir na queda, abre-se e oferece-nos um presente como aqueles ovos de chocolate das crianças. Depois há as outras vezes em que escorregamos nós e nem percebemos onde ou porquê, porque o piso era sólido e seco, regular e direito. Até o conhecíamos tão bem e os nossos passos eram tão certos. Esfolamos os joelhos, magoamos as canelas, fazemos nódoas negras, feios hematomas. Em algumas destas quedas andamos a passear com um bem precioso na mão. Nada mais frágil do que um coração fora de nós. Depois da queda-surpresa olhas para o chão que tens dentro de ti e só vês estilhaços. Baixas-te para apanhar os cacos maiores na esperança de conseguir colar tudo à pressa mas faltam sempre pequenas peças que foram parar a um lugar escondido dos teus olhos. Baixas os braços, encolhes os ombros, desistes da busca. Que se lixe. Que se lixe tudo, pensas e só ouves o teu eco. Estás vazio. Algumas vezes chegas mesmo a precisar de um ou outro ponto que trave o sangue e reconstrua a pele. Dói que se farta. Arde até a lavar as mãos. Até o que há de mais puro nos pode magoar na simples proximidade. Nem a água é inócua. Um dia olhas e já tudo sarou.


Pela Margarida, no seu delicioso Deixa Entrar o Sol

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