o [meu] silêncio tem voz[es] que o habita[m]

o silêncio habita nas ruas da minha cidade. um silêncio novo, povoado de sobressaltos, dúvidas e provações. vivido à porta fechada. apartado das ruas que são sinal milenar da nossa necessidade de estarmos em caminho, parando em tantas mansiones  [depois malapostas] quantas necessárias para, pouco a pouco, troço a troço, unirmos o [nosso] ponto de partida ao [nosso] ponto de chegada.

o silêncio habita agora as ruas da minha cidade. um silêncio formado pelo bater cadenciado de milhares de corações. um silêncio novo e distinto, que se afirma como testemunha e prova principal deste novo e inaudito ritmo dos dias.

o silêncio habita agora nos corredores do meu prédio. um silêncio novo, prenhe de vontade de ganhar voz para sair do anonimato das até agora confortáveis formas  de vizinhança distante, para assim tecer novos laços de pertença e comunhão.

o silêncio habita agora nas ruas da minha cidade. um silêncio novo, carregado de insuspeita esperança por um amanhã franco e luminoso. um silêncio tímido e denso, que cobre a existência das coisas de todos os dias e de todas as existências. uma promessa de esperança, na renovação das alianças entre homens e deuses, desde a noite dos tempos...

o silêncio habita esta imensa Arca de Noé que todos habitamos por estes dias. um silêncio novo e construtor. na esperança de um arco-íris-aliança do outro lado da janela projectada para mar aberto e desconhecido. na esperança-presente da ave mensageira que nos oferte um ramo de oliveira, em promessa de segura amaragem a novo porto. para dar início a um novo modo de habitar. a um novo modo de construir. tangível e intangível. uma promessa de futuro.

o [meu] silêncio ri e chora. constrói e edifica. desmonta e transforma.
o [meu] silêncio habita as ruas da minha cidade. habita as artérias do meu corpo-casa. 
o [meu] silêncio tem medos e incertezas. tanto quanto tem uma teimosa vontade de sorrir com a bonança de um futuro próximo.

[Silêncio, 1799, Johann Heinrich Füssli]


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