[Destes] dias





Quando este processo de ficar [sempre] em casa começou, cá por casa os mais novos lançaram-se ao desafio [certamente partilhado por tantos] de dar início a um puzzle. mil-e-quinhentas-peças. mil-e-quinhentos fragmentos de uma imagem final. de uma promessa de imagem final.







O que os meus mais novos sabiam à partida é que talvez seja distinto de tantos quantos se lançaram a este desafio de tornar mil e quinhentas peças uma imagem única. os meus pequenos construtores sabiam à partida de que faltavam peças a este conjunto.

Nunca esta construção estará perfeitamente terminada, sem ocos nem espaços vazios.

Não sabemos quantas peças faltam, mas temos a certeza de que faltam algumas.

E, apesar disso, eles lançaram-se à obra e começaram a dar forma a este retângulo de chão eleito para local de construção!

Admiro-os ainda mais por isso. por terem iniciado a obra sabendo que fica inacabada. apesar da certeza da incompletude da obra, dedicam-lhe tempo e atenção. complementam-se. persistem. celebram as conquistas [uma linha completa aqui. um canto ali. um continente ou um país completo …]

Vejo aqui uma metáfora simples e poderosa com a vida de todos os dias, mas particularmente com a vida destes dias.

E sorrio perante a sua tenacidade/obstinação/coragem de dar início a algo que permanecerá incompleto. inacabado. inacabado e Belo. completo nessa incompletude. frágil. efémero. breve.

Admiro muito estes miúdos. os meus miúdos. a sua capacidade de ajuste. a forma como procuram tornar os dias mais leves. a forma como se procuram ajustar a uma nova realidade para a qual foram lançados sem aviso prévio nem tempo de preparação.

Hoje vão à escola. Amanhã não vão. Ficam em casa. Sempre em casa.
E são estudantes. E são filhos. E são irmãos. E são netos, afilhados, primos …
E são … e são …
E são adolescentes à procura do mundo. do seu mundo. do seu lugar no mundo.

Tantos papéis para desempenhar a partir de uma casa partilhada, tantas vezes apinhada de gente, desafios e projetos.
Procuramos viver a vida como peça musical complexa, disposta em vários movimentos e ritmos alternados.

Não tem sido fácil encontrar o ritmo certo deste andamento musical: por vezes grave, gravissimo. outros num doce adagio, subindo em marcha moderada até ao nosso ritmo [aparentemente] normal. e assim vamos subindo o tom e o ritmo à medida que os desafios aumentam e as tarefas colidem no mesmo espaço. para assim passarmos de um andante moderato para um ritmo allegro ma non troppo, em crescendo; sempre em crescendo. e nesta espiral de movimento, vamos tantas vezes ficando sem fôlego, procurando o equilíbrio e a alegria. Presto, presto! Molto presto! Prestissimo!
Sentimos a vida e o controlo sobre as tarefas da vida a fugir-nos das mãos. num corrupio estonteante. Presto, presto! Molto presto! Prestissimo!

Depois paramos. Respiramos. Ou procuramos respirar. e percebemos que numa casa pequena, permanentemente habitada por pessoas com necessidades muito diferentes entre si, cada um viverá ao seu ritmo. haverá momentos em que, qual orquestra, nos encontraremos no mesmo andamento e todos participaremos na vida que sai da partitura dos dias.

Em sin[f]onia. Em sin[t]onia.

Haverá momentos de cacofonia. muitos.

E haverá [[espero] momentos de saboroso e imprescindível silêncio.

S | 24 de março de 2020


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